terça-feira, 30 de dezembro de 2008

- O Retorno da crise cíclica nos USA 20Set07

Implicações teóricas e práticas

por Ivan J., 20Set07
Prever, dever de todos - parafraseando livrementeMarx[1].
Em um artigo sobre a China, Marx dizia que o retorno das crises cíclicas deve ser previsto com rigor e precisão - sabemos agora o que ele tinha em mente. Em várias passagens d'O Capital ele retoma insistentemente o assunto das crises industriais, cíclicas.

Desde nossa primeira presença na lista ESKEURRA, há alguns anos, vimos cenarizando para um retorno da crise cíclica em uma janela que se abriria no final de 2005 e se fecharia no segundo semestre de 2007. O referencial teórico utilizado para tanto era o das "crises industriais" de Marx, referencial que exclui as formulações keynesianas assim como exclui as formulações das ondas longas. Com isso a interlocução teórica estava clara, mas também estava claro o exercício prático da previsão. O domínio do referencial marxiano naquela feita era tosco, como o é hoje ainda. Falta muito estudo, muita investigação. O material empírico para análise e projeção também era mais do que primitivo e tosco - aqui já houve até os dias atuais um avanço considerável, pelo menos no que tange aos dados mais agregados da crise. Falta ainda iniciarmos uma história da anatomia mais detalhada de cada crise desde os anos 1950. Isso será feito doravante uma vez que o retorno dessa crise cíclica nos sancionou a referência teórica básica na teoria dos ciclos industriais de Marx. Claro que falta também explorar devidamente os desdobramentos interdisciplinares da adoção desse referencial, e aqui trata-se da geopolítica, da questão da centralidade da classe, das estratégias e da seriação da revolução e etc...
De qualquer modo, trata-se de uma grande vitória teórica da teoria marxiana e isso é importante como validação da totalidade das suas formulações como teoria da realidade e como teoria da revolução proletária.

A crise enfim desabou sobre a economia norte-americana expressando-se já no nível de emprego, produção e lucros. Agora vai se espraiando para os setores da circulação e financeiros, e vai se espraiando para os outros segmentos dominantes do mercado mundial (Europa, Japão). Os mercados periféricos irão se ressentir fortemente logo em breve, nos próximos meses. A China desta vez irá sofrer uma desaceleração muito mais abrupta e pronunciada em suas taxas de crescimento, o que será suficiente para vermos eclodir várias revoltas sociais urbanas - o que deixará antever, apenas antever, o poder do proletariado chinês.
Não podemos excluir os cenários verdadeiramente catastróficos que estão sendo apresentados no momento (‘double dip’, depressão, hiper-inflação americana, colapso do dólar). O ambiente geopolítico nunca esteve tão quente nos últimos 30 anos como agora, em que se vê como certo um ataque dos USA ao Irã, e se vê como certa uma retaliação violenta, ainda que não generalizada, da Rússia e da China. Mas isso são cenários; interessa aqui o fato do retorno da crise cíclica, da crise industrial.
Trata-se de uma vitória teórica da teoria marxiana dos ciclos industriais (vide "Manifesto", "Das K", prefácios e etc...). Óbvio que não se trata só de economia! Só quem (e falo dos que se consideram marxistas) não é versado na totalidade da teoria marxiana é que pode abstrair a "economia", inclusive não lhe atribuindo o papel fundante, tanto histórico como estrutural, em todo o arcabouço (vide Marx e Engels, Ideologia Alemã, e também Anti-Duhring p.ex). Trata-se de uma ferramenta fundamental para a previsão da correlação de forças entre o proletariado e as outras classes (grosso modo a burguesia e a pequena-burguesia).
Nunca foi tão importante um RETORNO A MARX, e aqui eu compreendo MARX/ENGELS! É esse o primeiro conceito de ortodoxia, um conceito de resto leniniano, mas muito bem formulado por Lukacs no primeiro ensaio da História e Consciência de Classe. Não há muita elasticidade no que diz respeito à discussão teórica, pois o seu campo fica rigorosamente bem demarcado. Mas tarde o termo ortodoxia será atacado de dois lados, e os desígnios são eminentemente políticos. De um lado pela social-democracia e pela democracia teórica pequeno-burguesa que, claro, intentam relativizar Marx e Engels, e com eles as teses clássicas do socialismo revolucionário – simples essa estratégia. De outro lado, veremos o ataque posterior do stalinismo e sua ortodoxia.
Havia diferenças entre Marx e Engels? Sim, a grande maioria de estilo. O estilo mais seco de Engels não “encanta”, claro, os filósofos marxistas. Mas as diferenças teóricas estão todas elas documentadas nas correspondências.
Lukacs, se nos trouxe essa formulação importante, de resto leniniana, de ortodoxia, nos trouxe, em compensação, uma nuance. A rejeição de Engels. Engels era rejeitado por Bernstein e principalmente por Kautsky. Para Kautsky a “dialética da natureza” de Engels não era materialista, pois a dialética seria segundo seu estatuto próprio histórica e humana, social. Vemos vários links aqui, filosóficos. Claro que o “duro” Engels não poderia figurar nas formulações sutis da “filosofia marxista”. Veremos mais tarde o porquê, e esse porquê reside exatamente no hegelianismo, no esforço de reinserir as formulações marxianas na lógica idealista, dialética, hegeliana, que Lukacs, os lukacsianos e os pós-lukacsianos irão empreender com erudição e sistemática. De qualquer modo o conceito e, mais ainda, a estratégia de integração teórica do núcleo do marxismo revolucionário, através do conceito ou noção de ortodoxia, compreendida como RETORNO À TOTALIDADE DA OBRA DE MARX/ENGELS, é vital para a retomada dos movimentos operários que estão para se iniciar.

Mas quanto às diferenças entre Marx e Engels, perfeitamente documentadas, temos uma ligada exatamente aos fundamentos da teoria marxiana dos ciclos industriais. Assim, em uma dessas “questões” teóricas (para as outras vide cartas sobre as ciências da natureza) vemos Marx literalmente encher o saco de Engels, que era empresário, para que lhe arrumasse dados e informações a respeito de como os capitalistas contabilizavam o capital fixo, como o incluíam na precificação dos produtos, como o financiavam e renovavam. Engels, claro, tirando o maior sarro dessa “fixação” do companheiro, forneceu a Marx detalhadamente todos os usos e costumes da prática dos industriais a esse respeito. Não sabemos se Marx, o ingrato, agradeceu mais esse “servicinho”.... rs! Bem mais tarde, Marx morto, Engels vai editar os materiais do Livro II do “Das K” e se depara exatamente com a questão do capital fixo e o peso que Marx atribuía a ele nos ciclos industriais. Engels manifesta sua impressão de que Marx havia exaltado demais o capital fixo..., mas editou fielmente as formulações marxianas – e podemos vê-las nas várias edições do Livro II.

Nos anais dos 4 primeiros congressos da Terceira Internacional, a chamada "análise de conjuntura" era toda ela pautada pela análise do comportamento cíclico das economias européias e americana. E, aliás, dizem as más línguas que era Trotsky quem se dedicava a analisar o movimento econômico. E analisava muito bem. E foi de Trotsky, claro, a crítica a meu ver definitiva nas suas linhas gerais à teoria das ondas longas do seu contemporâneo Kondratief (que foi economista no governo Kerensky e depois morto, como também ocorreu com Trotsky, por Stalin – esse, convenhamos, tinha um modo meio estranho de dirimir as questões teóricas). Num artigo seminal, que o próprio Trotsky chamou de “rápidas notas”, ele expôs toda a falta de dialética e de materialismo na formulação de Kondratief. Isso nos anos 1920. E Trotsky não precisava mais do que umas rápidas notas para deslocar toda essa vertente das ondas longas.
Porém, um pouco mais tarde, nos anos 1950/60, vamos ver o trotskysta Ernest Mandel, economista, reintroduzir no marxismo revolucionário, não sem um pouco de “crítica”, a hipótese das ondas longas. Claro, o marco político-estratégico de Mandel era a “teoria da decadência”, aliás uma teoria de cunho luxemburguista, se bem que não da própria Luxemburgo. Os movimentos das ondas longas se superpõem aos ciclos industriais, chamados de curto prazo.
E o mundo dá voltas que, por assim dizer, convergem. Veremos Mészáros, um ex-lukacsiano e um dos expoentes globais do pós-lukacsianismo, esposar todas as teses econômicas de Mandel para caracterizar a “crise estrutural” em que o sistema teria adentrado exatamente a partir dos anos 1970 na Europa. Posteriormente veremos essa formulação somar-se à noção da “reestruturação produtiva” e etc. Daí explica-se a crise do movimento sindical europeu. Podemos ver essa formulação toda exemplarmente exposta nos trabalhos de Ricardo Antunes. Também nos seus trabalhos podemos ver os desdobramentos teóricos e políticos.

De qualquer modo, em Mészáros encontramos explicitadas as dimensões respectivamente dos ciclos longos (crise estrutural) e dos ciclos industriais (crises cíclicas). Para ele, claro, as crises cíclicas não passam de uma forma de reprodução do sistema, enquanto a verdadeira crise, a que aponta para os limites do próprio sistema, está na assim chamada “crise estrutural”. A partir daí veremos uma elasticidade política fantástica para “compor” um arco de forças sociais que reintroduzam as “massas populares”, as “forças sociais” na “política”, mas na “política sem politicismo”. A ‘razionale’ é pragmática e elástica no que toca aos meios e política de alianças para trazer “racionalidade” à condução do sistema, uma racionalidade que só pode ser transformadora num rumo preciso: o socialismo. Trata-se aqui, a meu ver, de uma das estratégias reformistas, pois é a partir das condições atuais, institucionais e políticas, que se iniciará o percurso para a sociedade que fica “para além do capital”.

Do ponto de vista que nos interessa, a relativização em maior (Chasin) ou menor grau (Mészáros, Antunes) do proletariado vem exatamente no momento em que se admite uma “crise estrutural” desde os anos 1970, uma crise que não produziu, muito ao contrário, inibiu o movimento de massas, em particular o movimento operário. A partir daí a revisão é inevitável. A centralidade não mais é a centralidade da classe nos moldes que Marx, Engels, Rosa, Lênin e Trotsky enunciaram, ou seja nos termos em que o marxismo revolucionário enunciou.
É assim que se apresenta questão dos ciclos longos (Kondratief, Mandel e etc.) e a dos ciclos industriais de Marx.

A crise cíclica tendo desabado nos USA, após as anteriores de 2001, 1995/6, 1991, 1987, 1979/82, 1973, 1968..., relança definitivamente a CENTRALIDADE DA CLASSE. Como? Trata-se de uma crise global que agora vem diretamente do núcleo do mercado mundial, a economia norte-americana. Trata-se de uma crise que pela sua anatomia é toda ela típica de uma crise industrial marxiana. No mais, nos coloca a ferramenta fundamental da previsão da remergência do proletariado mundial como classe para si. Nos evidencia um mundo industrial e o fundamento operário de toda a riqueza global. No trabalhador coletivo, o operariado é o núcleo mais importante e determinante. Uma das estratégias teóricas é a de pegar a definição do trabalhador coletivo (Capítulo Inédito, Marx) para exatamente relativizar a centralidade da classe operária.
Agora vemos a crise no interior da acumulação, no interior da sua estrutura produtiva (C+V ou Kfixo+Kcirculante) mostrar-se como o operariado industrial é também o fundamento da revolução. O operariado é um vetor essencialmente qualitativo, uma vez que tenha sido implantado no solo econômico e social de uma economia. No caso da economia latino-americana a Argentina, o Brasil, o México formam o esteio de toda a reprodução social. E nessas economias a economia industrial é o fundamento de toda a circulação e reprodução social. As crises industriais mais pronunciadas, é o que antevemos para o futuro, irá trazer o operariado para a cena social. Essa reemergência dar-se-á através de sua politização, ou melhor, de sua auto-politização. A forma como isso se dá concretamente é a da política operária. Ela começa com a política sindical – trata-se então de um processo eminentemente intra-classe. É ali, no seu interior, que começará a desenvolver-se de modo intenso a subjetividade revolucionária da classe, mais isso através de um intenso processo político e teórico – uma luta política e teórica em que a classe proletária busca constituir sua identidade no seio mesmo de seu núcleo duro, o operariado industrial de ponta.

Mas é isso precisamente que a crise industrial nos cenariza, a eclosão desse processo de auto-politização interior. Alguns prontamente iriam recorrer à imagem do “espontaneísmo” para relativizar um processo que se dá sempre no interior da classe. A noção prontamente recuperada é a de que “a consciência vem de fora”, e só poderia vir do “partido”. Essa visão é totalmente equivocada quer como interpretação da máxima leniniana (parafraseada originalmente de Kautsky), quer como análise do processo concreto de emergência da consciência de classe. Seria necessário compreender o porque da exigência de que qualquer instância da AIT seria composta por no mínimo 2/3 de operários. Em suma, ser intelectual no seio do operariado revolucionário, que aliás também usa brilhantemente seu intelecto individual e coletivo, não é tarefa que se garanta por si só a partir do estudo teórico. Muitas e muitas taras se desenvolveram ao longo do Século XX a respeito da relação entra intelectuais e o partido, entre os intelectuais e a classe, entre os intelectuais e as massas, entre os intelectuais e a revolução. Mas é a reemergência política da classe, buscando em termos práticos sua consciência revolucionária para a luta, que colocará a “contribuição” dos intelectuais marxistas nos seus devidos lugares. Novamente, será o estudo intenso da práxis de Marx, Engels, Lênin, Rosa e Trotsky (esse último o de 1905 e o período revolucionário), que nos fornecerá elementos preciosos a respeito dessa reinserção do elemento teórico na práxis da classe, reinserção esta que será reivindicada pela própria classe em vias de auto-organização.

Claro que essa cenarização toda vai contra as práticas de todas essas décadas dos movimentos sociais e políticos da extrema-esquerda. Na Argentina de 2001 o choque foi fulgurante e não será diferente no Brasil e no México. A classe operária é outra, a história é outra, toda essa novidade determinada pelos desenvolvimentos intensíssimos das forças produtivas que o continente sofreu nessas últimas décadas, desenvolvimento este que colocou na ordem do dia a primazia do capital industrial como esteio da reprodução material de todo o continente.

Esta crise, portanto, é a crise que poderá colocar o movimento operário argentino, brasileiro e mexicano numa dialética especial, que marcará um elemento novo, poderíamos dizer um elemento “de fora”, de toda a lógica economicista e oportunista que pautou as alas dominantes do movimento operário organizado até agora, o peleguismo e o oportunismo propriamente ditos. Aliás, é assim que compreendo os primeiros movimentos da “consciência vindo de fora” da qual Lênin fala. Trata-se, claro, de uma outra lógica, totalmente diversa da lógica imperante, dominante, no economismo teórico e prático que impera na grandessíssima maioria do movimento sindical contemporâneo, e que é típico dos períodos de contra-revolução. Claro que tudo isso se dá num vazio da classe, no reino da classe em si. Na constituição da classe em classe para si é que essa lógica “estrangeira”, revolucionária, reemerge. Kautsky compreendia “a consciência vem de fora” como compreendem os intelectuais da classe média. Lênin compreendia “a consciência vem de fora” como compreende o próprio movimento operário, inclusos os indivíduos intelectuais que se afinizam com as formas de luta, organização e desígnios da centralidade da classe operária na revolução.

Trata-se, portanto, de uma descontinuidade quando vemos a classe e seu ser buscando recolocar-se como ser revolucionário. Essa descontinuidade subjetiva da classe, que de classe em si emerge como classe para si, não é compatível com uma “crise estrutural” que se instalou desde os anos 1970. Somente as crises cíclicas, ou seja, a crise industrial de Marx, é compatível com essa ruptura que a classe realiza dentro de si mesma, ruptura de lógicas e de práxis, em que ela desperta para sua missão histórica. Todo despertar tem fases, sabemos disso. Talvez essa crise cíclica seja suficientemente potente para começar a despertar a classe operária latino-americana, cujos principais braços são os operariados argentino, brasileiro e mexicano, a colocar-se num processo interior de re-descoberta e re-elaboração de sua própria imagem, de seu plano para a espécie.

Notas

[1] Originalmente em http://br.groups.yahoo.com/group/eskuerra/message/45083.

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